Por Carol Gonçalves
Desde dezembro do ano passado, o setor de saúde do Rio de Janeiro passa por uma crise que fechou unidades, deixando pacientes sem atendimento e funcionários sem salários e insumos para trabalhar. Inclusive, foi decretado estado de emergência para que o estado pudesse receber dinheiro, equipamentos e medicamentos do governo federal com menos burocracia e de forma mais rápida. Os hospitais mais afetados foram Getúlio Vargas, Albert Schweitzer e Rocha Faria.
Medidas anunciadas na última semana de 2015 previam a liberação de R$ 155 milhões federais para a regularização de contratos do Governo do Estado, sendo R$ 20 milhões em insumos estratégicos hospitalares, um total de 300.000 itens, incluindo medicamentos, luvas cirúrgicas e próteses ortopédicas. Também foram disponibilizados 1.500 leitos em hospitais federais para pacientes encaminhados pela rede estadual.
Uma das alternativas encontradas pelo governo foi a municipalização dos hospitais Albert Schweitzer e Rocha Faria. O objetivo é que, com isso, o estado possa aplicar recursos em outras unidades para reduzir a crise.
Em janeiro deste ano, saiu a notícia de que os gastos com as OSs – Organizações Sociais, que fazem a gestão de hospitais e Unidades de Pronto Atendimento no município do Rio, devem superar o valor da despesa com funcionários da saúde. De acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2016, as OSs receberão cerca de R$ 400 milhões a mais que os gastos previstos com pessoal.
O problema é que esse aumento chegou em uma época em que se discute a fragilidade na fiscalização da maioria das OSs que fazem a gestão de hospitais e UPAs na cidade. Das 10 organizações que têm contratos com a Secretaria Municipal de Saúde, oito são alvo de denúncia do Ministério Público do Estado do Rio ou do Tribunal de Contas do Município, por superfaturamento, má qualidade na prestação de serviços e superlotação de hospitais, entre outros fatores.
Também em janeiro, a 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Saúde da Capital e o Grupo de Atuação Integrada da Saúde do MP recomendaram ao município do Rio que suspendesse todas as novas contratações por meio de OSs para a saúde. O MP ainda sugeriu a reestruturação interna da Secretaria Municipal de Saúde para permitir a fiscalização eficaz dos contratos de gestão.
OS
Essa situação abriu caminho para discutir, mais uma vez, as Organizações Sociais. De acordo com o economista da saúde André Medici, editor do blog Monitor de Saúde (www.monitordesaude.blogspot.com), as OSs tem se caracterizado como um modelo de gestão que permite melhorar a eficiência e o alcance de resultados, através de um processo em que os recursos públicos são gastos de acordo com a conquista de metas estabelecidas, e parte da remuneração de pessoal é associada ao desempenho. Ele explica que na medida em que se vincula o financiamento a metas de resultado, tanto quantitativo como qualitativo, as chances de alcançar melhores ganhos são maiores do que no setor público, no qual os serviços de saúde são financiados por orçamentos históricos, o pessoal é estável e desmotivado e não existe nenhum incentivo para que possam melhorar a produtividade ou a qualidade no atendimento à população.
“Do meu ponto de vista, não há problemas com o modelo de OSs, mas pode haver devido à forma pela qual essas organizações estão sendo gerenciadas, ou seja, caso algumas das condições básicas para que funcionem não estejam sendo cumpridas, levando à descontinuidade dos serviços. No caso do Rio de Janeiro, o principal problema foi a crise no financiamento e o fato de o governo ter suspendido os pagamentos contratuais às OSs por algum tempo”, conta.
Segundo Medici, a administração dessas organizações é um processo complicado porque envolve compromissos do poder concedente (no caso, a Secretaria do Estado de Saúde) com a concessionária (a OS). Ele acredita que é preciso considerar alguns aspectos essenciais para que elas funcionem adequadamente.
O primeiro são os contratos, tanto do governo com a OS quanto desta com os trabalhadores de saúde, nos quais todos os processos associados a como se fixam e se medem as metas de produção, desempenho e qualidade são estabelecidos, bem como os mecanismos de financiamento associados aos resultados alcançados, através de indicadores de desempenho que realizem o pagamento de acordo com a métrica exata dos resultados esperados. “Os contratos de trabalho entre as OSs e os trabalhadores precisam ser muito claros em relação aos incentivos associados a estas metas de produção e qualidade; e os indicadores e controles para que os resultados sejam alcançados devem ser estabelecidos, respeitados e fiscalizados”, expõe.
O segundo aspecto a se considerar é o financiamento justo e oportuno. Medici diz que se as OSs não recebem os pagamentos associados aos seus resultados nas datas e quantidades estipuladas nos contratos – uma vez que as metas de resultado são alcançadas –, ocorre uma ruptura contratual que pode prejudicar a concessão do serviço. Também devem ser consideradas cláusulas que permitam que estes pagamentos sejam reajustados caso os custos dos insumos aumentem.
Fiscalização é o terceiro item. “O poder concedente para a OSs, no caso a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, tem de estar a postos e ter pessoal qualificado para fiscalizar se os contratos estão sendo rigorosamente cumpridos e se as metas estão sendo alcançadas de acordo com o estabelecido. Devem dar seguimento às queixas dos pacientes e monitorar sua satisfação com os serviços prestados”, explica.
A fiscalização pode garantir se o financiamento está sendo justo de acordo com o contrato ou se existem mecanismos que precisam ser modificados, dado que esse documento deve ser revisto e atualizado sempre que necessário.
O quarto aspecto envolve ouvidoria, conciliação e arbitragem, ou seja, os problemas detectados, tanto no não cumprimento das metas, como na satisfação dos usuários ou de uma das partes – OSs ou governo – devem ser processados e resolvidos internamente pelas organizações e pela Secretaria de Saúde, ou em instância superior judicial, caso necessário.
Por último está a previsão de cláusulas para atender a situações de emergência, pois se alguma das condicionalidades não for cumprida por ambas as partes, afetando a oferta de serviços, é necessário ter um plano de contingência para que não haja reduções na oferta regular ou crises no atendimento às necessidades da população.
ADMINISTRAÇÃO DIRETA X INDIRETA
Questionado sobre as alternativas ideais para melhorar a situação do setor no Brasil, Medici acredita que mecanismos de contratualização, como OSs e PPPs, entre outras, são formas superiores de gestão dos serviços públicos em relação à administração direta. “Não digo que o estado não possa ser um bom gestor, mas para que isso ocorra, ele tem de separar as funções de administração central daquelas da gestão direta de cada unidade de serviço. Por exemplo, há escolas e hospitais públicos em muitos países desenvolvidos, como Inglaterra, Canadá, França e Estados Unidos, mas sua gestão é sempre descentralizada, o financiamento é associado a metas de resultados e os contratos de trabalho são flexíveis de acordo com planos e necessidades da gestão do estabelecimento. Com isso, minimizam-se os danos para a população em geral trazidos pelas greves do pessoal estável de saúde, permitindo uma atenção de melhor qualidade para as pessoas”, expõe.
Medici explica que tanto as OSs como as PPPs são modelos de concessão de serviços em que a gestão de cada unidade é independente e descentralizada, tornando a administração flexível para o cumprimento de metas acordadas com o governo. Com isso, o estabelecimento tem melhores condições para gerenciar suas compras, recebendo insumos de forma ágil e expedita, além de poder adequar seu quadro de pessoal às necessidades do modelo de atenção e criar incentivos para fornecedores e trabalhadores associados às metas a serem alcançadas.
FALHAS
De acordo com Medici, o que está acontecendo no Rio de Janeiro é o não cumprimento de algumas das cinco condições mencionadas. “É possível que os contratos tenham sido falhos em algumas cláusulas. Certamente, desde o segundo semestre de 2015, os problemas de financiamento do estado, trazidos pela redução da arrecadação do ICMS e dos royalties do petróleo geraram as condições para o descumprimento dos compromissos do governo com o pagamento das OSs. Estas, ao não recebem recursos para administrar as unidades de saúde, e na ausência de algum tipo de acordo ou negociação que permitisse investimentos de outras fontes emergenciais, acabaram atrasando os salários e restringindo o atendimento”, esclarece.
Ele cita que, em geral, países ou regiões que recebem recursos extraorçamentários associados a receitas de produtos primários, como o petróleo, não os aplica diretamente no orçamento público, mas criam mecanismos para reservá-los, como hedge funds (fundo de cobertura), para que possam servir como financiamento nos momentos de crise. “O Rio de Janeiro colocou os royalties recebidos diretamente como parte do financiamento e não como reserva, tendo dois tipos de efeitos negativos: o aumento desnecessário das despesas em momentos de auge associado à falta de fundos para enfrentar as despesas essenciais (como a saúde) nos momentos de crise.”
Para o economista, a fiscalização não foi suficiente, nem os mecanismos de ouvidoria, conciliação e arbitragem e por fim, não havia plano de contingência, ou, se havia, não foi implementado no momento certo ou de forma adequada.
Medici diz que a existência de um plano de emergência que incluísse compensações financeiras ex ante (baseadas em suposição e prognóstico) ou ex post (baseadas em conhecimento, observação e análise) para os serviços, de acordo com os contratos, poderia ter evitado no mês de dezembro do ano passado o fechamento de emergências de hospitais públicos em 17 das 29 UPAS e a restrição do atendimento somente a pacientes “em risco de morte iminente” nas demais unidades sob contrato de OSs, além da provisão de insumos e medicamentos que também foram notados durante a crise.
Outro problema apontado é a falta de coordenação de um processo de referência e contrarreferência da demanda das OSs nesta situação de emergência, que levou a uma sobrecarga abrupta de 30% na demanda das unidades federais e municipais. Assim, na inexistência de planos de emergência, o Governo Federal e o Governo do Município do Rio de Janeiro tiveram que socorrer a Secretaria Estadual de Saúde, com serviços e recursos, levando à municipalização de dois hospitais e a disponibilização de leitos de hospitais federais para atender à demanda.
“Além disso, o governo do estado conseguiu recursos especiais de empréstimo da prefeitura do Rio de Janeiro e liberações do Governo Federal para pagar os compromissos com as OSs, mas eles não parecem suficientes para enfrentar as necessidades orçamentárias para 2016. Nesse sentido, os desafios continuam, com riscos de que a falta de atendimento volte, mas ao mesmo tempo, abrindo oportunidades para que se possa fazer um processo negociado de revisão e atualização dos contratos, com base naqueles cinco princípios”, finaliza.